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BLUE TRAVEL No. 17| NOVEMBRO 2004



TODOS OS TEXTOS © BLUE TRAVEL | KATYA DELIMBEUF

La Grave
Sensações extremas!

Longe dos fenómenos de moda e das tendências, La Grave, nos Alpes franceses, não fabrica um produto de consumo - oferece um estado de espírito. Esquiar aqui, ou fazer qualquer outra actividade relacionada com a montanha, é uma experiência totalmente diferente da oferecida nas tradicionais estâncias. Razoavelmente desconhecida dos franceses, segredo sussurrado entre «freeriders» e «extreme skiers», o ambiente nesta aldeia dos Alpes é tão acolhedor quanto informal.

Por Katya Delimbeuf / Fotos de Yves Callewaert

A paisagem não engana. Ladeando a estrada que sobe, há lágrimas brancas pousadas sobre as pedras, como espuma de barbear. O céu está furiosamente azul, o rio serenamente verde, o único som que se ouve é o do vento, zumbindo-nos docemente aos ouvidos. Uma película de açúcar em pó polvilha os cumes da montanha, que se aproxima, a cada nova curva. Estamos a chegar. Ali está ela, por trás das árvores nuas, despidas de folhas: a montanha branca, enorme, imponente.
Chegamos ao fim da tarde. São 17h, e dezenas de esquiadores em fatos de neve e botas de ski passam por nós. Fazem-se anunciar pelas pesadas passadas, que me fazem sempre pensar no Michael Jackson numa coreografia do ‘Thriller’. Amarelo, laranja, vermelho, azul, roxo, preto: têm todas as cores os fatos, os esquis, as pranchas. É o teleférico que os traz, o último do dia, cuspindo fornadas de esquiadores como pão quente. O ambiente é muito informal: os fatos despem-se junto de caravanas, carrinhas ou carros velhos; há cabeças desgrenhadas, com ‘rastas’ ou ‘dreadlocks’ e uma atmosfera ‘surfista’, em versão ski.

A hospitalidade de La Grave, um pequeno povoado com cerca de 500 habitantes, que se espraia ao longo de uma estrada nacional, no Sudeste de França, é das primeiras impressões que se confirmam. Todos dizem ‘bom dia’…

Em busca do melhor sítio para ver o pôr-do-sol, dirigimo-nos instintivamente para cima. E batemos com o olhar na torre sineira da igreja. O centro histórico construiu-se em torno da igreja e conserva umas dezenas de casas de pedra, algumas com data do século XVII. O facto de não haver madeira em abundância na zona, somado a uns quantos incêndios ‘espectaculares’, desmotivaram a população de construír nesse material. Por isso, tudo no centro de La Grave é em pedra. Da igreja com a torre sineira que ainda dá as horas, a todas as casas. Muitas têm frisos de madeira por cima das janelas, com motivos entalhados ou a indicação da sua data de construção: 1640, 1825, 1648...
Do telhado de uma das casas, o gelo derrete lentamente, numa sinfonia de pingos compassados. Só se ouve o som dos pássaros e o rugir de uma cascata em fundo, dessas que se escalam e que proporcionam momentos de inegável beleza e prazer. E adrenalina... Basta atentar nos nomes: ‘Orgasmo’, ‘Fantasia’... Ou ‘Iremos todos para o paraíso...» Isto promete... Este passeio pelo centro da aldeia é muito agradável. Entretanto, o sol prepara-se para se pôr sobre a montanha, pintando os seus cumes de laranja e vermelho. É um espectáculo a que vale a pena assistir religiosamente, todos os dias. Com cumprimento ritual.

Deitar cedo e cedo erguer
São 8h30 da manhã e o hotel está uma agitação. Só se ouve o barulho de botas de neve a andar e portas a bater. Mas a coisa é pior que eu pensava: às 9h da manhã, somos os únicos na sala do pequeno-almoço. «A maioria das pessoas acorda às 6h ou às 7h e está pronta às 8h...», explica-nos a dona do hotel. A essa hora, a aldeia já mexe, e às 9h, quando parte o primeiro teleférico, são muito poucos os que ficam cá em baixo. Aqui, o provérbio «deitar cedo e cedo erguer» não caiu em desuso. Quem vibra com o ambiente da Serra Nevada deve afastar-se de La Grave. Neste povoado, não há uma única discoteca e as pessoas não se costumam deitar depois da meia-noite. A ideia é acordar proporcionalmente cedo, para apanhar o primeiro teleférico, em direcção ao monte branco.

Juntemos-lhes, então... O teleférico - cinco ‘cabines’ amarelas, laranjas e vermelhas, em ‘dégradé’ - não é propriamente recente: data de 1986, e tem a particularidade de, dez anos antes, ter sido dinamitado duas vezes por habitantes locais que queriam manter La Grave virgem de turismo... (Quem disse que só no País Basco havia terrorismo?) Com um sistema de roldanas um tanto ou quanto arcaico, transporta-nos em meia hora dos 1525 m de La Grave para os 3200m, e depois para os 3550m. A boa notícia é que nunca há fila... A má... é que o teleférico não transmite uma grande sensação de segurança... apesar de o ser. De tempos a tempos, paramos e ficamos suspensos no ar – está a entrar um novo conjunto de cabines, noutro patamar. É nesta altura que percebemos porque é que chamam a isto o telefe(é)rico: é que a vista... é de sonho.

Pequenos loucos... ou pequenos deuses
A 2500 m, mudamos de cabine, para ir até aos 3200. Os funcionários da estância usam um truque para evitar que as portas se fechem - gostam mais de apreciar a vista assim, sem vidro. Romain Douat é um deles. Trabalha no restaurante de Daniel, o «Le Haut Dessus», a 3200 m – já lá iremos. Há seis anos que descobriu La Grave - e que se apaixonou. Nunca mais partiu. Começou a trabalhar na aldeia, para poder ficar, e assim foi, até hoje.
Suspensa na cabina, olho para baixo – não recomendável a quem sofra de vertigens – e tenho uma boa perspectiva dos 2150 m de desnível que fazem a fama de La Grave. Extremo é de facto a palavra... Não consigo evitar o seguinte pensamento: «Meu Deus! Há quem pague para fazer estas descidas vertiginosas, aparentemente loucas, por estas escarpas e encostas abaixo! Vistos daqui, os esquiadores e ‘snowboarders’ parecem pequenos loucos... ou pequenos deuses. Não será por acaso que La Meije, o cume de La Grave, a 3983 m, foi o último pico dos Alpes a ser conquistado, em 1898.

Repetentes e aficionados
Sentada na esplanada do restaurante «Le Haut Dessus», a 3200 m, onde todos páram para almoçar ou tomar banhos de sol, está Dorothea. O sítio acaba por ser um local de convívio, já que toda a gente passa por aqui. Dorothea Kriele, 33 anos, olhos azuis e cabelo castanho, curto, é alemã. Veio de Colónia, com o marido e a filha, Léa, de 3 anos. Não é usual verem-se crianças em La Grave, pela dificuldade do ski, integralmente em ‘hors-piste’. Dorothea defende, no entanto: «La Grave não vale só pelo ski, vale também pelo montanhismo e pela relação com a montanha». Há dez anos que vem aqui - todos os anos, em Março: «É como um chamamento», confessa. A primeira vez, até se despediu de um emprego para vir esquiar, lembra, a rir.

La Grave está cheia de repetentes e ‘habitués’, de todas as idades. Um casal de ‘velhotes’ de cabelos brancos está sentado ao nosso lado. Jörg e Ann Kummer, de 78 e 76 anos, vêm a La Grave há 12 anos – quatro vezes por ano. São de Frankfurt, na Alemanha. Compraram uma casa em Le Chazelet, um povoado aqui perto, e passam cá temporadas desde que estão reformados. «Agora tive de diminuir um pouco o esforço com o ski, por causa do meu coração», diz Ann, olhos azuis e cabelo curto, branco. ‘Quero chegar a esta idade assim’, penso para com os meus botões. Olhando em volta, é fácil perceber que há aqui um pouco de tudo: desde jovens na vintena e na trintena a veteranos do ski e ‘velhotes’ de cara branca, cheia de creme, que se entretêm a comparar as experiências de cada um e as estâncias a que já foram. Não há, no entanto, aí, qualquer vislumbre de ostentação ou de tiques ‘jet-séticos’. O objectivo da conversa é sempre o mesmo: ski, ski. Ski. Em comum, têm todos o seguinte: são todos esquiadores proficientes.

Esplanada para a montanha
A paisagem daqui de cima é um deslumbramento. Pacífica, branca. Uma imensidão de montanha, intocada, gigante... Vista de perto, a neve tem a textura de torrões de açúcar... Se lhe der a preguiça ou não lhe apetecer esquiar – coisa pouco provável -, pode sempre ficar nesta esplanada com vista para a montanha, a 3200 m de altitude, alongar-se numa espreguiçadeira e curtir, ou ficar curtido, pelo sol. Há qualquer coisa no azul glorioso deste céu e na luz que reflecte este enorme monte alvo que nos faz querer olhar para ele o dia inteiro... Almoce aqui, como o faz a maioria dos esquiadores (o atendimento é tão personalizado que o empregado que sai com o prato pedido chama pelo nome da pessoa), aprecie a paisagem enquanto ouve uma música simpática, ou aproveite para conversar com Daniel, o gerente do restaurante. De voz rouca, olhos azuis e cabelo branco, ficou-nos como o ‘Clint Eastwood de La Grave’.

Daniel Philipe, o ‘Clint Eastwood’ de La Grave, é uma personagem local. Com 52 anos, está aqui há 15, pelo que já viu muitas mudanças. Foi de há dez anos para cá que La Grave conheceu um ‘boom’ substancial, sobretudo graças ao ‘freeride’. Antes, era essencialmente o ski que trazia cá pessoas, e não eram muitos que sabiam da existência do sítio. Ainda hoje, poucos em França (até em Lyon, aqui ao pé) conhecem a existência e o potencial de La Grave. Daniel reconhece: «Nós, habitantes de La Grave, gostaríamos de - egoísticamente - guardar isto só para nós. É um dos poucos sítios em França onde ainda há esta liberdade. E isso é impagável. Não a queremos perder...», confessa.
Olhando para a encosta, Daniel consegue distinguir os esquiadores de La Grave e os de outras estâncias – como a de Les Deux Alpes, próxima, mas muito mais comercial e em nada semelhante a La Grave. «Aqueles vêm de lá», garante. «Como é que sabes?», pergunto. «Vêm com um guia e seguem todos uns atrás dos outros, em manada. Fazem exactamente a mesma curva, vão quase em fila indiana. Não são de La Grave», remata, peremptório. Daniel diz uma coisa interessante: «A gente da montanha não precisa de ser criativa. Temos tudo aqui» - e aponta para a imensidão branca. «Não precisamos de imaginar nada. A malta da cidade é que precisa de ser criativa, para não ficar maluca...»

Ski de grau 8: os perigos de La Grave
No caminho de regresso à aldeia, apanhamos o último teleférico, das 16h30, e voltamos a cruzar-nos com Dorothea, vinda de um passeio com guia. Não dispensa todo o equipamento de segurança, que traz sempre com ela, nomeadamente a pá e o Arva, o aparelho de procura de vítimas de avalanches, que emite som por baixo da neve. «Vi demasiados acidentes aqui o ano passado. Vi uma pessoa caír numa ‘crevasse’ e morrer mesmo à minha frente...», diz. «O Arva é tão aconselhado aos esquiadores como o capacete aos motociclistas», brinca Bertrand Poinsonnet, 31 anos, guia de caminhadas, com um sorriso irónico. «Há sítios declaradamente perigosos na montanha, como o ‘Couloir des Tryfides’. Quem o faz sabe que tem 50% de hipóteses de lhe sobreviver... É como jogar ‘pocker’. Tu sabes o que está em risco...» Não é isso que impede este ‘couloir’ de ter ‘clientes’ todos os dias... «É preciso ser humilde», continua Bertrand. «Conhecer muito bem o seu nível técnico, conhecer as condições da neve, que mudam de dia para dia, saber até onde se pode ir».

17h. Cá em baixo, as pessoas dirigem-se para a esplanada do ‘Castillan’, o hotel mais próximo do teleférico, na praça central. É aqui que se faz o ‘après-ski’, em torno de uma cerveja, sentados a uma mesa, os esquis alinhados contra a parede. É assim até cerca das 19h, altura em que se começa a desmobilizar para tomar banho e seguir para o jantar. Porque amanhã, claro, é mais um dia de ski...

Amor à primeira vista
La Grave desperta amores violentos e certeiros. Se há coisa que não falta aqui, são pessoas que se apaixonaram. Numa viagem de teleférico, encontramos Gian Paolo Alberti, um italiano de 35 anos, que veio passar o dia a La Grave. Para vir esquiar hoje, acordou às 5h da manhã, fez quatro horas e meia de estrada, sozinho, chegou às 9h, fez sete horas de ski, e prepara-se para se fazer de novo à estrada para mais quatro horas e meia de caminho... Para bom entendedor...

Também Erick Dutheil, um jovem louro de ‘dreadlocks’ com sardas e olhos azuis, vive aqui há quatro meses. Tem 20 anos, e aprendeu a fazer ski já em La Grave. Trabalha no restaurante de Daniel para ter dinheiro para ficar, e vive numa tenda mongol em Villar d’Arène, um povoado a 2 km de La Grave. «E não faz frio, na tenda?» «Sim, um bocadinho...» Mas o que é isso perante a possibilidade de ficar?

Mas o ‘apaixonado-mor’ de La Grave é, sem dúvida, Bill - o verdadeiro homem da montanha. Este ‘esquimó do Alasca’ passa todos os invernos em La Grave, desde que a descobriu, há quinze anos. A sua casa está repleta de esquis e pranchas de ‘snowboard’ encostadas à parede, harmónicas, guitarras e banjos. O cabelo revolto negro, os olhos pequenos, verdes, Bill - aliás William Audette, 52 anos, nascido nos EUA, em North Vermont -, tem ar de índio e neve nas veias. Praticou ski e ‘snowboard’ «a vida toda». Fez quase tudo o que é possível em torno disso: treinou equipas em Aspen, competiu pelos EUA, esquiou para vários filmes... Quando achou que no seu país tinha deixado de haver liberdade para esquiar, mudou-se para o Alasca, em busca de «mais aventura». «Gosto de sítios crus, perto do estado original», admite. Durante oito anos, viveu lá, numa caravana, a pescar salmão na sua canoa, no oceano.

Enamorou-se de La Grave logo da primeira vez que a viu: foi «coup de foudre». «As pessoas aqui são muito hospitaleiras...» A partir de então, passou todos os invernos aqui – e é aqui que quer passar os restantes. «Sinto-me mais em casa neste sítio do que em qualquer outro», garante. Todos os dias faz uma hora e meia de ioga, pela manhã, e todos os dias esquia, sem excepção. «Natais, fins-de-ano também...?» «O prazer está em ir, não em não ir», riposta. Bill gosta de ficar na montanha até ao último raio de luz. Aliás, todos sabem que apanha sempre o último teleférico, e que o seu cão entra e sai das ‘cabines’ com o mesmo à-vontade do dono. Encontra-o todos os dias no restaurante de Daniel, por volta das 16h30. Ou então na montanha, até o sol se pôr.

La Grave, cada vez mais do mundo
La Grave adquiriu uma dimensão internacional, sem no entanto ter uma nacional. Vivem aqui quatro ou cinco pessoas do Alasca, um casal de suecos – Io-io (Josephine Äs) e o marido, Peter Äs, guia -, uma vintena de portugueses casados com filhas da terra e outros estrangeiros que descobriram este diamante em bruto. É o caso, também, dos novos donos do Hotel Edelweiss, Marlon Treffers e Robin Grey. Ela é holandesa, ele escocês – e o Edelweiss é um hotel familiar, de 25 quartos, com o ‘espírito de La Grave’. Tem um ambiente descontraído e muito ‘cool’, onde toda a gente fala com toda a gente, sem peneiras nem títulos. A clientela é tão fiel que chega a reservar com dez meses de antecedência - já há pedidos até 2005. Marlon trocou Paris, onde era gerente de um banco, por La Grave e pela sua qualidade de vida. Há dez anos que ela e Robin cá vinham, de verão e de inverno. Ele, que esquiou em todos os sítios do mundo, garante que nada se compara a este. Há cerca de dois anos, começaram a pensar em comprar uma casa nos Alpes - mas os donos anteriores não queriam vender a qualquer um: «Tinham de ser pessoas que mantivessem o espírito de La Grave». Hoje, Marlon garante que tem o dobro do trabalho, mas muito mais gozo. E Robin não abre mão das suas três horas diárias de ski, «se o pó estiver bom».

«Aquilo que tem salvo La Grave da expansão caótica e do desenvolvimento é o facto da maior parte da área ser ‘não construtível’, por causa das avalanches», explicam. No entanto, e apesar do segredo ainda não estar muito disseminado, já há nostálgicos do tempo em que se andava pela montanha sem se encontrar vestígios de outros esquiadores. Mas os habitantes de La Grave têm tradição de acolher bem os seus visitantes. Não é em qualquer sítio do mundo que um estranho lhe dirá «bom dia»... Além disso, talvez o principal segredo de La Grave seja este: conseguiu crescer, mantendo a alma intacta.

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